TEXTO CEDIDO POR:
A. H.
Professor /
PUC
Doutorando em Letras/PUC
No dia 10 de março de 1993, em Londres, divulgava-se
pela primeira vez no exterior, as imagens de um documentário produzido
por Simon Hartog antitulado Brasil: Beyond Citizen Kane. Poucos dias depois,
o Museu da Imagem e do Som de São Paulo, graças a uma cópia
pirata obtida diretamente em Londres por uma telespectadora, fazia uma
dupla apresentação do documentário, programando-se
novas projeções para os dias 3 e 4 de junho.
Contudo, na noite do dia 2, um telefonema do Secretário de Cultura
do Estado de São Paulo, Ricardo Ohtake, dirigido ao programador
do MIS, jornalista Geraldo Anhaia Mello, cancelava aquelas apresentações.
Formava-se, imediatamente, uma espécie de cadeia pirata em todo o país - novas cópias do vídeo foram produzidas e distribuídas Brasil afora, e alguns dos principais sindicatos começaram a programar a exibição do documentário. As versões sobre a proibição variam: Ohtake garante que não havia porque proibir, a não ser pelo fato de se tratar de uma fita pirata. Anhaia, ao contrário, acusa diretamente a intervenção de Roberto Marinho, a subserviência do governador de São Paulo de então e do seu Secretário de Cultura. Há consenso, porém, numa coisa: não fora esse episódio e talvez o filme - que no exterior provocava batalha jurídica de mais de um ano da Globo contra o Canal 4 da BBC, tendo a Globo perdido a causa - não se tornasse tão conhecido, tão debatido, tão comentado quanto foi então. O processo se completa agora: a editora Scritta acaba de publicar a transcrição do roteiro do documentário, ilustrado por algumas de suas imagens. A edição traz um depoimento do próprio Geraldo Anhaia de Mello, responsável pela mesma.
Do ponto de vista brasileiro, é o mais recente, e felizmente já relativamente antigo episódio de tentativa de censura em nosso país. É claro, contudo, que a questão vai mais além do que isso, porque envolve a discussão em torno da própria política nacional de comunicações e, muito especialmente, os critérios pelos quais se concedem, mantém e renovam as concessões de canais de rádio e, sobretudo, de televisão.
O título
- Muito Além do Cidadão Kane
- tal como se traduziu o livro que agora se lança, faz alusão
direta à personagem criada por Orson Welles, em seu famoso filme,
por seu lado referência direta ao magnata das comunicações
dos Estados Unidos, William Randolph Hearst, cuja filha, décadas
depois, envolver-se-ia com a guerrilha urbana. Na época, Hearst
constituía-se em verdadeiro mito, e o filme de Welles tornou-se
uma das dez obras-primas cinematográficas. Beyond Citizen Kane tem
sido
normalmente divulgado como sendo
o documentário em torno da Televisão Globo e de seu multipoderoso
proprietário, Roberto Marinho. Na verdade, a primeira observação
que se deve fazer a respeito é que
sua atenção se encontra
centrada em Marinho e na TV Globo apenas porque ela é a exemplificação
mais cabal e radical da experiência da política de telecomunicações
brasileira. Simon Hartog, porém, queria ir mais longe, e de fato
foi, como o reconhece o próprio Anhaia: o que se pretende é
denunciar a maneira palaciana pela
qual Marinho ouBloch,
Sílvio
Santos ou
Saad, cada um pegou a sua fatia. Mais
que isso, e certamente os livros que se têm lançado recentemente
sobre Samuel Wainer e Assis Chateaubriand bem o evidenciam, Marinho não
agiu diferentemente de como agiria qualquer um dos outros dois. Acontece
que Marinho foi menos amador que os demais ou, quem sabe, o sistema capitalista
no qual se acha hoje inserido o Brasil é mais cínico e eficiente
do que aquele, ainda primário, experimentado pelas duas outras personagens.
Portanto, o que se deve ter claro, desde logo, é que Marinho não
é nem pior nem melhor que Wainer, Chateaubriand, Saad, Bloch ou
qualquer outro. Foi, apenas, mais competente e eficiente, alcançando
melhores resultados em suas manobras. O episódio que culmina no
papel da Globo em nossa realidade, contudo, tem de ser compreendido
em sua perspectiva macro, ou seja, enquanto superestrutura social,
política e econômica que viabiliza tais situações,
envolvendo desde a ingenuidade de alguns segmentos sindicais e de ativistas
de esquerda, que imaginaram democratizar a política de concessões
de canais de rádio e televisão quando retiraram a decisão
exclusiva do Presidente da República, repartindo-a pelo Congresso
Nacional, até os profissionais jornalistas que, a exemplo de Armando
Nogueira ou Vianey Pinheiro, só contam as verdades depois que foram
despedidos da emissora.
Em última
instância, é todo o conjunto da sociedade nacional que, de
fato, responde por essa situação, na medida em que, conivente,
dá à Globo aquilo que ela mais quer: a audiência que
lhe garante o poder da influência e negociação
junto ao segmento político e administrativo.
Lembremo-nos que,
paralelo ao controle censorial dos meios de comunicação,
a ditadura brasileira de 1964, a partir do Ato Institucional nº 5,
em 1968, idealizou uma espécie de movimento compensatório
positivo: tratava-se de atender à demanda do segmento da classe
média brasileira que, embora
nem tão numeroso assim, em
termos relativos da população nacional, era suficientemente
significativo para a indústria de bens duráveis que então
compensava se instalar no país, cobrindo de quinze a vinte milhões
de pessoas e sendo superado, portanto, apenas por alguns raros outros
mercados, dentre os quais o norte-americano. De qualquer maneira, justificava-se
plenamente qualquer investimento, o que, aliás, é a
única explicação para que se compreenda os fenômenos
que ameaçam permanentemente o Plano Real, a chamada "bolha de consumo".
Havia, pois, um duplo movimento -
de um lado, o controle censorial e, de outro, a cooptação
mediante a ampliação das ofertas no mercado de consumo, ofertas
essas viabilizadas, em sua divulgação, através de
um network tal como a Globo o construiu ao longo dos anos. A Globo estreou
no dia 26 de abril de 1965. Na verdade, fora antecedida pelo sinal pioneiro
da TV Tupi, em 1950, seguida pela TV Excelsior em 1960. Duas emissoras
e dois projetos absolutamente diversos: a Tupi sucumbiria, em 1980, à
queda
do próprio império
dos Diários Associados. A Excelsior enfrentaria problemas no futuro,
não tendo sua concessão renovada, por ter tido a ousadia
de resistir à ditadura. Transferida, numa espécie de leilão,
para
o grupo Bloch e Sílvio Santos,
abriria caminho para a TV Manchete e o SBT. Iniciando-se com um empréstimo
duvidoso mediante um ainda mais duvidoso acordo operacional com o grupo
norte-americano Time-Life, o que era proibido pela legislação
brasileira, a TV Globo aproveitaria, suspeitamente, dois episódios,
na aparência negativos, para seu crescimento, para firmar-se e crescer:
o primeiro foi, justamente, a decisão do Congresso Nacional em dissolver
o acordo da Globo com a Time-Life. Roberto Marinho não reclamou.
Pelo contrário. É provável que os norte-americanos,
sim, tenham acabado lesados no episódio, mas como sabiam perfeitamente
os riscos que corriam, não chiaram.
O outro episódio
ocorre em 1969: um incêndio destrói as instalações
da Globo em São Paulo. A emissora centraliza o telejornalismo e
toda a produção no Rio de Janeiro, graças ao dinheiro
obtido pelo seguro, e assim garante a ocupação da magnífica
sede do Jardim Botânico. De onde se depreende que Roberto Marinho
é, acima de tudo, um excelente empresário e se, num primeiro
momento, teve o máximo empenho em dar suporte e manter-se próximo
ao segmento que identificava o governo ditatotial, na verdade seu interesse
ia bem mais longe: "a Globo não tem uma vocação necessariamente
militarista, ou ditatorial, mas ela tem uma vocação governista.
Onde tem governo está a Rede Globo" -
afirma o documentário, e
pode-se verificar que, evidentemente, em sendo necessário eleger
o governo, como no episódio Collor de Mello, ou apoiar sua derrubada,
desde que isso signifique a garantia de seus
investimentos e interesses financeiros,
a empresa não titubeia. Claro, contando com cinco estações
retransmissoras afiliadas, cobrindo 99,2% do território brasileiro
ou 99,9% dos aparelhos de televisão do país, garantindo uma
fatia de 78% da audiência, abocanhando 70 a 75% do total da mídia
nacional que, no Brasil, na área de televisão, ultrapassa
os 50%, ou seja, mais de dois bilhões de dólares em 1990,
a Globo não pode titubear sobre a política de seu interesse.
Se ao governo
federal a TV Globo interessa exatamente pelos fantásticos percentuais
de audiência que atinge, garantia de que a mensagem governamental
chegará ao seu destino, à Globo essa audiência lhe
dá um poder de barganha inigualável, transformando-a, literalmente,
numa espécie de poder paralelo, maior que um simples quarto poder
como se tem conhecido a mídia em geral. Não se trata, porém,
da aplicação pura e simples da velha fórmula
da teoria do projétil, mecanicista. Dito mais claramente,
não é apenas a questão de que a Globo diga o quê
devemos pensar ou sonhar. Mais grave é o poder de agenda, na acepção
do professor Donald McCombs, que torna hoje a Globo altamente perigosa.
A Globo diz sobre o quê devemos pensar, quais são os temas
que devem ou não ocupar nossas preocupações,
tendo institucionalizado, para tanto, um discurso tautológico que,
estribado na qualidade - "padrão Globo"- na verdade vende sua própria
imagem, reforçando-a permanentemente. É o caso típico
de programas como Globo Repórter ou Fantástico, as promoções
sociais de apelo humanitário que assina, a construção
cuidadosa de uma auto-imagem em que a credibilidade é o apelo mais
veiculado, mesmo que muitas vezes seja posto em dúvida por outros
segmentos sociais.
O slogan "Globo e você, tudo
a ver" como que institucionaliza a common view, um modo comum de visualizar
a realidade, de tal forma que a audiência alcançada, e amplamente
divulgada, como que tautologicamente se mescla com o conceito de credibilidade:
é como se pudesse garantir que a Globo tem audiência porque
tem credibilidade. Assim, mais do que um quarto poder, a Globo se torna
um Poder Oculto Supra-Real que substitui outras instâncias das relações
sociais, mediante a constante reelaboração daquilo que Muniz
Sodré já denominou de "simulacro", uma super-realidade que
distancia de tal forma a realidade original, que simplesmente a retira
de qualquer outra referencialidade: ainda que alguém estivesse vendo
um certo fato acontecer, só acreditaria nele à medida em
que isso fosse enfocado pelas imagens da televisão.
O mais grave, contudo, é
que hoje a própria Televisão Globo começa a se tornar
um meio para algo além de si mesma. São mais de cem as empresas
dirigidas por Roberto Marinho, segundo publicação recente,
num total de vinte mil funcionários. Este homem, que se diz jornalista
e que começou em 1926, quando seu pai, Irineu Marinho, fundou o
jornal O Globo, aos 90 anos de idade, integrante da Academia Brasileira
de Letras, é dono de um conjunto de interesses que vão do
campo de saúde (com a Golden Cross) ao da própria infra-estrutura
da comunicação (como o episódio da NEC, do empresário
Mario Garnero), atingindo hoje a televisão por cabo e assim por
diante. A Globo também já investiu em emissoras no exterior
e atualmente acança enorme lucratividade com a venda de seus programas
a dezenas de países, de Cuba à China, mesmo que gerando problemas
com o não-pagamento do chamado direito conexo de imagem, uma das
grandes polêmicas atualmente em nosso país.
Muito além do Cidadão
Kane, assim, seja em sua versão de vídeo, seja agora na versão
que chega ao livro, através do roteiro transcrito, presta ao Brasil
esse bom serviço: mais do que falar da Globo, fala-nos sobre os
processos e emaranhados que determinam a política de telecomunicações
no Brasil.
A Globo, na verdade, é apenas
uma conseqüência disso. Se entendermos com clareza tal situação,
conseguiremos, quem sabe, nos próximos anos, avançar na solução
para esse problema, modificando, passo a passo, a atual legislação.
Se isso não ocorrer, de pouco ou nada adiantará o encaminhamento
de outros problemas urgentes que o país enfrenta: continuaremos
uma nação pela metade e, portanto, também cidadãos
pela metade .
Referência Bibliográfica
1 MELLO, Geraldo Anhaia. Muito além do cidadão Kane.
São Paulo: Scritta Editorial,
1994